"Comece pelo começo - respondeu o Rei, muito sério - E vá até o fim. Quando terminar, pare." (Alice no País das Maravilhas - Lewis Carroll)

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Sobre cidade que tem trem.




Cidade que tem trem é um trem, né sô? Só gente que mora em cidade que tem trem tem desses trem. É um trem que passa de pai pra filho na família. Meu vô levou muito meu pai pra ver o trem. Meu pai me levou pra ver o trem. Eu levei meu filho pra ver o trem. Meu filho tem tanto trem pra fazer que não arranja tempo pra levar meu neto pra ver o trem. Aí eu vou e levo, uai! Que trem doido que é esse de não ir ver o trem em cidade que tem trem. Pode não! Eu levo meu neto e toda vez ele conta os vagões do trem.
- Vô, eu só sei até o quarenta, depois disso o senhor me ajuda?
- Ajudo, sô!
Já teve trem de mais de oitenta vagões, é!!! Cidade que tem trem é um trem bom demais de morar! Agora eles tão querendo tirar o trem. Tão falando que tá atrapalhando o trânsito, que tá pegando os carros. Olha procê ver que trem mais sem cabimento! Pois se o trem passa num lugar só que é a linha, pra quê que os carros vão parar lá? E se o povo parasse de andar de carro pra andar a pé e ir ver o trem não tinha tanta gente gorda igual tem.
Oh o trem apitando!
- Vô, o trem tá vindo! Vamo ver o trem!
- Vamo, sô! Vamo vê o trem enquanto ainda tem trem pra vê!

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Sobre Calatrava.



Hoje eu quero falar sobre Calatrava, Santiago Calatrava. Os olhos verdes de Laura nunca brilharam tanto como quando estávamos na Ponte de La Mujer. Minha mulher, Laura. Enquanto eu me impressionava com aquela estrutura e sua complexidade, Laura poetizava sobre o movimento daquela ponte e fazia metáforas sobre seu nome de mulher e sua estrutura rígida nada humana. Eu sou engenheiro, Laura é arquiteta. No meio das metáforas desisti de ouvi-la, era subliminar demais. Mas nem por isso deixei de acompanhar sua pequena boca de lábios delicados proferindo aquelas palavras fazendo-as parecer sagradas. E o modo como ela gesticulava, parecia até uma coreografia ali. Coisa de mulher, de mulher arquiteta... Seus cabelos loiros levemente ruivos acompanhavam o vento... Outra coisa que eu nunca entendi, loiro levemente ruivo. Pra quê tantas cores? Não dava pra ser mais exato? Coisa de mulher, de mulher arquiteta... Mas nada superava aqueles olhos. Os olhos verdes de Laura, os olhos verdes da arquiteta Laura, os olhos verdes da minha mulher Laura. Eles brilhavam refletindo as águas de Puerto Madero. E tudo nela brilhava refletindo minha imagem... Como amo Laura, como ela me amou. Estou falando de Laura... Coisa de homem, de homem apaixonado... Hoje eu quero falar sobre Calatrava.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Sobre conversas às claras.


Odeio acordar cedo e preciso urgentemente trocar essa música do despertador. Ah! Não sei pra quê ainda me espreguiço, todo o meu corpo dói. Rebeca dorme, pelo menos um de nós pode acordar tarde. Um banho frio é tudo que eu preciso agora. Vou deixar a barba pra fazer amanhã. Gravata, cadê você? Aposto que o Caio te pegou de novo. Vou escolher outra. Chaves do carro, ok; pasta, ok; carteira, ok. Escritório, aí vou eu. Saco. Trânsito, como minha vida seria melhor sem você. Aliás como minha vida era muito melhor antes desse maldito... Ah, merda. E esse rádio ligado? Ninguém merece! O que mais tem nesse som? Ah não, o CD da Rebeca. Rebeca e suas musiquinhas ridículas. E pensar que eu já gostei disso. Pensar que eu já gostei dos nossos programas bobos, que eu já gostei de coisas fúteis como ver o sol se pôr dançando e bebendo com ela. Mal sabia eu quão amarga é a vida. E repetitiva. Que saco, cheguei. Escritório de advocacia. Se eu jogasse uma bomba em você seria mais feliz.
- Bom dia, doutor Rodrigo! Ligaram da...
Preciso trocar de secretária. Mulherzinha implicante. Enquanto eu não bato a porta na cara dela ela não para de falar. Minha cadeira. Se eu te jogasse pela janela você levaria todos os meus problemas consigo? Aliás, como esta cidade consegue ficar cada vez mais horrível vista daqui de cima. Ok, Rodrigo. Vamos lá. Se prepare para ouvir a voz irritante novamente. Flash, 9.
- Pois não, doutor Rodrigo.
- Me traz o café e os processos de hoje.
Que tipo de mulher leva mais de dois minutos para preparar o café? Preciso mesmo de uma secretária nova. E ainda me traz esse café medíocre. Processos, seus diabinhos, engulam-me. Agora é minha vez de engolir essa comida horrorosa. Mas prefiro assim a almoçar em casa. Esse sofá da minha sala me faz querer dormir todos os dias após o almoço. Devo trocá-lo também?
- Com licença, doutor Rodrigo, o senh...
- Quantas vezes eu preciso repetir que você deve bater na porta antes de entrar?
- Perdão, eu bati mas o senhor pareceu não ouvir. Estou indo, até amanhã.
Nossa, já é essa hora? Pelo menos não vejo o tempo passar e só vou em casa pra dormir. Vou fechar esses processos e... aaaaah! Estou cansado... Cadê meu paletó? Ali. O que foi isso?
- Ivone, eu ainda estou aqui! Acenda essa luz!
- Olá, Rodrigo...
- Rebeca? É você? O que você está fazendo aqui?
- Não, não sou Rebeca... Sente-se um pouco, Rodrigo... Ou melhor, deite-se um pouco no sofá...
- Rebeca, que espécie de brincadeira é essa? Eu estou cansado e quero ir pra casa.
- Eu só quero conversar um pouco...
- No meu escritório com as luzes apagadas?! Rebeca, faça-me o favor!
- Você não tem um minuto pra mim?
- Não. Eu não tenho. Agora não. Estou indo embora. Se quiser ficar aqui no escuro, que fique.
Droga, e ainda sou obrigado a chutar esse maldito banco. Maldita escuridão! Maldita Rebeca! Pelo menos esse elevador tem luz, e a garagem e os faróis do meu carro. Como foi que a Rebeca parou aqui?! Droga. Droga, droga. Larguei ela sozinha lá em cima. Que se foda. O carro já está ligado, vou pra casa.O que deu na sua cabeça, Receba? Pelo amor de... Ah, que saco! Tomara que o Caio esteja dormindo pelo menos, minha paciência por hoje já deu. Dormindo, que bom. Rebeca ainda não chegou. Vou tomar um banho e dormir. Ela não deu um jeito de ir? Então. Vai dar um jeito de voltar também.
Ah, a irritante música do despertador, não troquei. Rebeca. Ah, Rebeca, que bom que você voltou. O que foi aquilo? Mas não vou pensar nisso. Banho, barba, carro e trabalho. Foco na barba, já não fiz ontem, de hoje não pode passar. Hoje prefiro nem encostar nesse maldito som de carro. Tudo deveria ser tão silencioso quanto esse elevador do prédio do escritório. Dona Ivone, por favor não me cumprimente hoje. Muito obrigado. Pelo menos ela lê pensamentos agora. Só não entendi esse risinho frouxo. Deve ter encontrado um louco que aceitou passar a noite passada com ela. Noite passada vai ser um termo proibido nos meus pensamentos hoje. Mas o que é isso?! Um cravo vermelho na minha mesa! Só podia ser uma mulher de muito mau gosto pra fazer isso mesmo... Então é esse o motivo do risinho, dona Ivone. Não sou obrigado, faço questão de jogar isso no lixo bem na sua frente. Tá vendo esse cravo, dona Ivone? Lixo! Mais respeito, por favor. Rodrigo, não bata a porta quando estiver com dor de cabeça que isso só piora a situação. Merda. Ok. Respira. Processo, almoço horrível, foge do sofá, mais processos. Pelo menos consegui manter minha cabeça ocupada o dia todo. Que barulho de porta foi esse? Ah, que ótimo. Agora a dona Ivone vai embora sem avisar também. Não. Escuro de novo não!
- Rebeca, é você? Quer parar com essa brincadeira?! Já me torrou o saco!
- Não, Rebeca não...
- Put... Ah! Ódio. Fala logo o que você quer, Rebeca.
- Sente-se um pouco, Rodrigo...
- Ok. Vou fazer seu joguinho e você vai me deixar em paz. Estou sentado, o que você quer?
- Você se lembra de mim, Rodrigo?
- Como assim, eu me lembro de você? Claro que me lembro. A não ser que você tenha providenciado um divórcio sem me avisar, você continua sendo minha esposa.
- E você lembra dos nossos amigos? Quando saíamos  todos juntos? Nós nem namorávamos ainda...
- Putz, Rebeca! Você vai me desenterrar essas histórias a essa hora da noite?
- Você lembra como foi quando você me tocou pela primeira vez? Nós tentamos pegar o mesmo copo ao mesmo tempo e você acabou tocando minha mão e já aproveitou para...
Não Rebeca, aquela mão não. Basta.
- Chega, Rebeca! Se quer contar historinhas do passado procure alguém que queira ouvir ou pague alguém que faça isso. Eu estou indo embora e esse é meu último aviso, pare-de-vir-aqui!
Que droga, Rebeca! Que droga! Por que você precisava me lembrar disso? Por que aquela mão? Eu já penso nisso todos os dias desde... Droga, Rebeca! Você só piora ainda mais minha vida. Bloqueei pensamentos. Casa e cama. Música do despertador, ou eu te troco ou eu te jogo do outro lado do quarto a qualquer momento. Rebeca. Não quero estar aqui. Não vou tomar banho, quero ir logo para o trabalho. Sem pensamentos por hoje. Estafa mental. É, Rodrigo, você estava indo muito bem até encontrar esse cravo vermelho na sua mesa. Agora você lembra... É claro que só podia ser a Rebeca. A primeira vez que vocês se viram ela tinha um cravo vermelho na orelha, você passou a cantada mais ridícula do mundo mas pelo menos se tornaram amigos. E namoraram, e se casaram, e tiveram o Caio e aí você estragou tudo quando... Que bom, arranquei metade do cravo sem ver. Pelo menos agora ele se parece mais com Rebeca. Rebeca, Rebeca. Processos, me tirem essa mulher da cabeça, por favor. 
- Doutor Rodrigo, já estou indo. Como o senhor não almoçou hoje, deixei um lanche preparado na cozinha. Até amanhã!
Como assim eu não almocei hoje? Processos, eu pedi pra vocês tirarem a Rebeca da minha cabeça e não todo o resto. Agora eu estou com o pescoço todo duro, os olhos doendo, a cabeça explodindo e o estômago nas costas de tanta fome. É melhor eu ir comer... Que ótimo, a lâmpada da cozinha queimou. Agora tudo está com síndrome de Rebeca.
- Rodrigo...
- Rebeca. Por que não estou surpreso? Você de novo.
- Rebeca não. Trouxe um bolo de chocolate que você gosta, coma...
Como você conseguiu encontrar minhas mãos no escuro, Rebeca? Isso é o de menos, estou com muita fome.
- Você se lembra como gostava que eu cozinhasse pra você quando nós éramos namorados?
- Hmm.
- Eu estava pensando se a gnt não poderia fazer um jantar, só pra relembrar... Já tem tempo que nós não cozinhamos juntos mais...
-Hmm.
- Já tem tempo que nós não fazemos quase nada mais...
-Hmm.
- Você não sente falta, Rodrigo? De mim? De nós?
- Obrigada pelo bolo, Rebeca. Estou indo embora.
- Rebeca não...
Não entendi. O que ela quer, afinal? Por que eu não fiquei lá e conversei com ela? Ela é minha mulher... Eu sou um covarde, estou fugindo. Para, Rodrigo! Você é um advogado, faça sua defesa ao invés de se aliar à acusação. Não, cabeça, não. Hoje eu não estou nem pra você. Bloqueio de sentimentos. Quero minha casa, quero minha cama. Quero minha mulher... Despertador. Ótimo, apaguei de novo. Bom que não penso em nada. Rebeca, você voltou... Será que se eu te tocar, você acorda? Não. Não posso te tocar. Tenho que ir trabalhar, não é mesmo? Bloqueio de pensamentos de novo antes que eu comece a surtar. Quer saber de uma coisa?
- Dona Ivone, a senhora está dispensada hoje. Tranque a porta quando sair, por favor.
- Mas doutor Rodrigo, o senhor não vai precisar de mim? Hoje seu dia está cheio, tem...
- Dona Ivone, não abuse da minha paciência. Embora. Agora.
- Tudo bem, senhor. Até segunda então. Bom final de semana.
Final de semana. Odeio finais de semana. Ter que ficar em casa procurando motivos e desculpas para me fechar no escritório enquanto vejo Rebeca brincar com Caio no jardim. Aquela cena horrível. Eu sou mesmo uma pessoa horrível. Covarde sou eu mesmo por não ter tido coragem de pedir o divórcio. Ou melhor, por não ter tido coragem de não pedi-la em casamento em primeiro lugar. Mas eu posso dar um fim em tudo hoje. Eu posso e eu vou. Já joguei fora muitos pensamentos hoje nessa cadeira. Já está quase na hora. Hoje eu mesmo vou apagar as luzes. Relaxa, Rodrigo. Relaxa. Coragem.
- Rodrigo.
- Rebeca.
- Não.
- Rebeca, diga de uma vez o que você quer. Você quer se ver livre de mim de uma vez não é isso? Despeje logo seu ódio de uma vez só em mim, é melhor assim!
- Rodrigo, você se lembra da festa no sitio do Fernando dois meses atrás?
- Rebeca, você está sendo injusta.
- Estava tão boa, não é mesmo? Conseguimos reunir todos os nossos amigos de novo...
- Rebeca onde você quer chegar?
- Você se lembra, Rodrigo? Lembra de como dançamos juntos?
- Eu me lembro Rebeca, é claro que eu me lembro. E me lembro também que eu bebi demais e fui culpado por tudo. É disso que você quer que eu me lembre, Rebeca?! É disso?!
- Rodrigo... Se desarme... A festa estava ótima! Nós aproveitamos! Você bebeu demais, eu bebi demais... Nós fomos descuidados sim... Um pouco de jovens irresponsáveis. Mas Rodrigo...
- Não tem mas Rodrigo, nenhum, Rebeca! Fui eu! Eu que bebi e dirigi aquele carro! Eu que causei aquela situação ridícula! Eu prendi seu braço entre o carro e um barranco de pedras e ferros, Rebeca! Você vê isso?! Não, você não vê porque seu braço não está mais aí, não é mesmo?! Porque eu estava tão bêbado que não conseguia mover o carro sem deixar seu braço pra trás!
- Rodrigo, eu estou bem, eu estou aqui, eu estou viva, eu não estou menos inteira por causa de um antebraço!
- Rebeca, pelo amor de Deus! Se escute! Que espécie de marido mutila a própria mulher?! Eu sou um lixo, Rebeca, um lixo! Eu não mereço você! Aliás, eu não deveria nem ter me interessado por você. Você continuaria linda, perfeita e inteira se eu não tivesse te dado aquele maldito beijo!
- Rodrigo, você me acha menos bonita, é isso? Por isso não consegue me olhar? Você me acha menos inteira porque me falta um antebraço? Me acha menos mulher? Porque eu, Rodrigo, eu nunca deixei de te amar, com nenhuma parte de mim. Sempre te amei e sempre vou te amar por inteiro.
- Por inteiro, Rebeca?! Como?! Por causa de mim você não é mais inteira! Olhar pra você só me faz lembrar o lixo de homem que eu sou!
- Me toque.
- O quê?!
- Me toque, Rodrigo.
- Rebeca, você surtou?!
- Rodrigo, por favor... Há dois meses você não toca em mim... Só não me olha porque não tem jeito. Estou te pedindo, me toque.
Droga, Rebeca! Por que você está me torturando assim?! Não, não... Seus cabelos, ah Rebeca! Seus cabelos continuam tão macios... E sua pele, tão suave, o contorno da sua boca... Seus ombros sempre tão firmes, seus braços... Um inteiro, com uma mão tão macia. No outro um coto, o braço que eu estraguei.
- Não pare, Rodrigo.
Ah, Rebeca... Por favor! Seu quadril, como eu gosto da forma desse quadril... Suas coxas, sempre tão quentes, você está arrepiada Rebeca... Sua barriga, tão magrinha... Desde sempre você com seu corpo de atleta. Seus seios fartos, desconsiderando a lógica do corpo magro... Seu rosto, como você é bonita, Rebeca...
- Eu te amo, Rodrigo. Eu te amo.
- Eu te amo, Rebeca!

Rodrigo não tinha pensamentos na cabeça. Todo ele era corpo, alma e sentimentos pela mulher. Ele a beijou. Ele a amou. Como quem não o fazia há séculos. Ele se libertou de toda a prisão que o sufocava. Ele tinha a mulher mais amada do mundo ali ao seu lado. A mais bonita, a mais perfeita. A mulher inteira que escolhera-o para pertencer.

O que é isso? Sem despertador? Meu Deus! Eu dormi no escritório! Rebeca! Ah, Rebeca, como te amo! Onde você está, Rebeca? Você sempre indo e vindo sem que eu perceba. Onde estão minhas roupas? Rápido, Rodrigo! Apanhe suas roupas e vá logo encontrar sua mulher! Ainda bem que não tirei o CD da Rebeca do carro... Ela tem muito bom gosto. 
- Rebeca?
Onde ela está? O quarto está vazio... Caio não está em casa... Ah, lá está ela! Tão linda! Me preparou um café no jardim, ah Rebeca... E o cravo vermelho na orelha.
- Bom dia, meu amor!
- Bom dia, Rebeca!
Finalmente um beijo pela manhã.
- Rebeca, muito obrigado por não ter desistido de mim. Eu não tenho palavras para te dizer que justifiquem o quanto eu fui idiota, eu só...
- Está tudo bem, meu amor... Você só passou por um momento de escuridão e eu te entendo.
- Por falar nisso... Porque as luzes apagadas? Por que você não queria ser Rebeca?
- Porque você não queria me ver... E eu não queria ser Rebeca, eu queria ser o seu amor...
- Ah, meu amor!
- E tem mais uma coisa...
O que será? Não acredito que ela vai cochichar no meu ouvido... Sua boca perto da minha nuca sempre me causou arrepios... Lá vem ela...

terça-feira, 24 de março de 2015

Sobre ecos.

Chego. Me olho no espelho do banheiro e vejo a mesma mulher bonita de todos os dias. Lavo meu rosto. Fico noiva hoje. O amor da minha vida, minha família e meus amigos esperam pelo momento que direi "Eu aceito". Coloco minha roupa justa, tênis, amarro meu longo cabelo e vou andar. Coloco meus fones, a música toca. Todos me olham na rua. Não quero pensar em nada agora. Aumento a música. Alguém sorri para mim do outro lado da rua, sorrio de volta. Corro. Ouço meu coração acelerar. E a música alta. Continuo correndo. Sinto minha respiração ofegante. E a música alta. Corro mais rápido. Sinto o suor escorrer do meu rosto. E a música alta. Corro ainda mais. Sinto meus músculos queimarem. E a música alta. Intensa. Como cheguei aqui? O rio. A água corre na minha frente. Muita água. O coração acelerado, a respiração ofegante, o suor escorrendo, os músculos queimando. A música e a água. Eu aceito. Eu não sou a mulher feliz, eu não sou a tragédia, eu não sou as matérias nos jornais, eu não sou o corpo que afunda. Eu sou a correnteza. E eu sou forte.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Sobre eu, ele, ela.

- Não se vá, Rosemere! Ele disse ao fechar a porta. Sou um gênio!
O gênio que falava sozinho era Alfredo. Desde pequeno desenvolvera um grande interesse pela leitura. Colecionava obras de todos os gêneros publicadas em todo o mundo e trocava qualquer experiência por uma boa e solitária leitura. Sempre quis escrever. Se esforçava ao máximo por horas a fio mas não conseguia. Não tinha o dom... Enlouqueceu. Com os pais misteriosamente mortos, vive hoje numa casa que está sempre fechada, mas onde passa a maior parte do seu tempo, saindo apenas para comprar alimentos e livros. Todas as pessoas com quem se encontrava na rua viam nele uma pessoa estranha, doente e perturbada... Tinha pena dos pais que o criaram com tanto afeto e agora, mesmo mortos, o sustentavam com uma gorda pensão e herança. Há quem o acuse de ser o responsável pela morte dos pais, aquele louco! Era doente, deveria estar internado. 

- Um brinde à sua nova obra, meu amor!
- Ah, Rose! Minha vida! Um brinde a você por me oferecer essa personagem maravilhosa!
- Um best seller na certa, Alfredo! Mais um para a sua carreira! Prepare-se para mais coquetéis, autógrafos, fotos, entrevistas...
- E você prepare-se para nossa próxima viagem!
Alfredo era um escritor de grande sucesso. Vaidoso, casara-se com Rose, uma atriz, e decidiram não ter filhos. Vivem luxuosamente em meio a festas e trabalhos de altíssimo valor. Sempre presentes na mídia, são o casal mais querido dos jornalistas sérios e baratos. O último livro de Alfredo era um romance feito em homenagem à sua esposa e seria lançado na próxima semana. Os preparativos corriam para o grande lançamento que seria realizado nos estúdios de gravação onde ela trabalhava. Depois uma série de noites de autógrafos por vários lugares do país.

Alfredo acordou naquela sexta feira comum. Saiu da casa fechada e foi ao mercado mais próximo para comprar comida. Ao sair viu um cartaz fixado no vidro do caixa onde se lia "Lançamento do livro 'Rose' do premiado autor Alfredo Lopes!". Era daqui três dias. Alfredo pegou o cartaz e levou para casa. Não conseguia tirar os olhos do pequeno papel. Era seu nome, ele era Alfredo Lopes. Mas não se lembrava de ter escrito um livro com o título "Rose". Não se lembrava de ter escrito livro algum. Que brincadeira era aquela? Ele iria naquele evento tirar a história a limpo.

A cidade pequena estava cheia. Parecia que todos os moradores decidiram comparecer ao lançamento do livro. Alguns foram realmente pela leitura, outros pelo autor, outros pela esposa atriz, outros só para ter o que fazer, já que a cidade não era tão movimentada para eventos. Alfredo distribuía autógrafos, sorrisos e fotografias enquanto Rose conversava amigavelmente com os presentes. Alfredo chegou e assustou-se com a quantidade de pessoas. Ficou parado à porta observando por alguns minutos. Subiu as escadas e ficou num canto pensando qual daquelas pessoas estaria usando o seu nome. Viu uma pilha de livros de capa vermelha onde lia-se "Rose" em letras douradas. Pegou o livro e teve uma sensação até então desconhecida por ele. Era como se segurasse veludo... E o cheiro de rosas...
- Boa noite! - era Rosemere, o cheiro de rosas atrás de Alfredo.
Ele ficou hipnotizado com os olhos azuis de Rose. Não conseguiu sequer responder...
- Está tudo bem?
- Com licença - Alfredo saiu andando a passos largos e só parou dois quarteirões depois se dando conta de que espremia o livro sobre o peito sem ar. Olhou mais uma vez o livro e sentiu o perfume de rosas. Os olhos azuis... Limpou o suor que lhe escorria pela face e andou até sua casa. Leu o livro inteiro sem conseguir parar, madrugada adentro... Aquelas palavras eram dele. Ele tinha certeza! "- Não se vá, Rosemere!". Ninguém além dele terminaria o livro dessa maneira, com aquela frase. Alguém se passava por ele! Alfredo iniciou uma busca por todas as informações do autor. Ambos nasceram no mesmo dia e mês, porém Alfredo era um ano mais velho que o Alfredo Lopes do livro. Ambos órfãos. Era um absurdo! Como pode?! Como pode?! Alfredo movia-se freneticamente pela sala, Sentava-se balançando na cadeira, passava as mãos no rosto limpando o suor com desespero, puxava seus cabelos. Falava sozinho:
- Os meus lapsos de memória! É ele! Eu escrevo, ele rouba minha produção e me faz esquecer. Ladrão! E Rose, Rose, oh, Rose! Ela é minha esposa! Minha!!! Canalha! Ele vai me pagar por tudo que roubou de mim! Vou recuperar minha vida, tirá-la dele! Tirar a dele! Alfredo Lopes! Al-fre-do-lo-pes! Eu! Só eu! Sou eu! Eu sou o escritor! O único! Eu sou Alfredo Lopes! O único Alfredo Lopes!

sábado, 13 de setembro de 2014

Sobre o corte.

Juarez e Verinha casaram-se ela tendo 17 anos a menos que ele. Os amigos dele diziam:
- Abre o olho, Juarez! Agora não faz diferença mas quando você estiver entravado na cama e ela quiser sair pra dançar, aí quero ver como há de ser!
Mas Juarez não se importava. Nem Verinha. Sua preocupação se limitava à fortuna do futuro marido e como ela seria gasta em joias e roupas.
Pouco tempo depois de casados, Verinha arrumou um amante, um namorico antigo de infância que reapareceu ao saber do casamento. Juarez se queixava de muita dor de cabeça e de não enxergar bem, "são os chifres", pensava a esposa, mas dizia:
- O que pode ser, benzinho?
- A idade chegando, meu amor... Sinto aparecerem os problemas da vista. Preciso de um oftalmologista. Quando você pode me levar?
Verinha não o deixava sair sozinho, era muito ciumenta e sofria horrores ao pensar em perdê-lo. Certa vez ela se questionou se isso não seria amor. Logo descartou a possibilidade. Ela linda e jovem amando aquele velho? Não! Era só o dinheiro mesmo.
- Vou marcar ainda esta semana, benzinho.
Marcou e lá foram os dois. Juarez tinha um grave problema de vista que poderia cegá-lo se não tratado. O médico disse o diagnóstico apenas para a mulher de forma a não afligir o velho senhor. Receitou alguns colírios e lançou a ideia de uma possível cirurgia. A mulher não quis contar ao marido e foram conversando sobre outros assuntos até a volta para casa. Naquela mesma noite foi encontrar-se com o amante. Sobre o assunto, ele disse:
- Ah, neném... Não conta nada não, o velho não demora pra bater as botas, talvez isso até adiante o processo... Deixa como está. E eu também não vejo a hora de ser seu marido.
Ela então não contou a verdade ao marido. Ele foi perdendo a visão e ela o enrolando nas idas ao oftalmologista. Quando Juarez já quase não via mais nada, Verinha contratou uma enfermeira para cuidar dele. Contratou uma solteirona, feia que dói, evitando o risco de ser trocada.
- Meu benzinho, essa é a Jurema, vai me ajudar a cuidar de você. Vou deixar os dois aí que preciso ir ao banco. Te amo, meu Juju!
- Adeus, meu amor! Como é boa minha esposa... Como vai, Jurema?
- Bom dia, senhor Juarez!
A voz de Jurema era música aos ouvidos... O que lhe faltava de beleza física fora para a voz.
Verinha foi para a casa do amante. Reclamou de novo da mania dele de colocar vasos de flor em prateleiras na parede em que a cabeceira da cama apoiava. Mal sabia ela...
Estavam os dois na cama quando um desses vasos caiu e cortou-lhe a testa. 
- Jurema, venha aqui!
Era Verinha chegando em casa. Jurema abriu a boca ao ver o curativo na testa da madame.
- Mas o que foi isso?!
- Caí de uma escada, Jurema, mas estou bem... Juarez não vai conseguir enxergar o curativo, ele não precisa saber...
Jurema não contou nada a Juarez. Mas uma amiga de Jurema que era dona de um pensionato, ligou para contar que hoje caíra um vaso na cabeça de uma mulher que ela sabia ser casada que se encontrava há anos lá com seu amante. Jurema indignou-se. Passou duas semanas pensando no assunto até que resolveu...
- Senhor Juarez...
- Ah, Jurema! Que voz doce a que você tem!
- Obrigada, senhor Juarez. Mas o que tenho para lhe falar não será tão doce...
Ao chegar em casa naquela tarde, Verinha não encontrou ninguém. Aproximou-se da cômoda e viu papeis. Eram papeis de divórcio e um bilhete: "A voz de Jurema é tão doce..."
Fora trocada. Verinha chorou de desespero e ao levantar o rosto viu-se no espelho e com ela a marca da sua culpa. Bem no meio da testa.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Sobre fantasminhas.



Ernesto, 87 anos, velho carismático, língua afiada, bem humorado, descarado, morrendo de cirrose hepática. Ele estava deitado na cama de sua casa quando pediu que seus netos entrassem. Eram cinco. Luis de 23 anos, Débora de 20 anos, Kaik de 18 anos, Luíza de 15 anos e Rafael de 3 anos.
- Queridos netinhos, o negócio é o seguinte. O vovô tá indo pra highway to hell e como ama muito vocês tem alguns conselhos pra dar. Eu nunca fui muito certo da cabeça e aconselho vocês a fazerem o mesmo. E como eu bem sei que muitos de vocês herdaram meu sangue de porra louca, aqui vão alguns conselhos: façam da vida de vocês o que quiserem. Se alguém falar o contrário concorda na hora, vira as costas e faz o que quiser. Se for uma coisa muito brava pode até mandar ir pro inferno em silêncio, um dia você vai morrer e ninguém vai lembrar das suas maravilhosas palavras de afeto. Só vocês sabem o que é bom pra vocês. Ou não. Mas em algum momento vocês vão ver qual das opções é a certa. Eu vi quando conheci sua vó. A melhor coisa da minha vida foi ter dado um jeito de amarrar sua vó em mim e deixar ela aqui comigo até hoje. Ela vale mais pra mim do que tudo no mundo, do que cada gota de álcool que hoje mata meu fígado e várias outras merdas que já estiveram em mim. Sua vó é foda! Ela é boa em tudo, e em coisas que vocês não precisam saber também. Quando eu tiver mortinho, se segura nela. Só pra finalizar a parte dos "conselhinhos" de velho gagá, Kaik, vodka é coisa de viado. Se você quer beber, pega a chave embaixo do vaso na porta de entrada e abre aquele porão que fica escondido debaixo da grama lá no fundo. Vasculha aquilo ali e vê se vira homem.
Rafael dava gargalhadas no chão.
- Passemos pra mim agora, o astro dos últimos dias. Eu quero que vocês me enterrem nu. Assim ninguém vai querer ficar naquela bosta de velório por muito tempo e acaba rápido com essa babaquice. E outra, me enterrem com muitos, mas muitos cogumelos, não sei como vai ser essa viagem pro além, vai que eu preciso. E, o mais importante, cuidem da sua vó. Débora e Luíza, certifiquem-se de que vocês serão companheiras tão maravilhosas como ela foi pra mim. Cacete, eu amo sua vó. – ele suspirou longamente – É isso, crianças. Agora vão embora porque eu preciso peidar e ultimamente isso tem fedido como o inferno. Puta que pariu, eu tô podre.
Ernesto morreu oito dias depois. Foi enterrado com seu melhor terno azul marinho e rosas brancas. Ninguém entendia porquê seus netos riam tanto no gramado ao lado.